Não há outra saga de quadrinhos mais influenciada pela arquitetura do que o Batman. Gotham e os arquitetos fictícios que construíram esta cidade foram os personagens principais desde as primeiras edições. O escritor e arquiteto Jimmy Stamp descreve neste ensaio as referências e metáforas arquitetônicas fascinantes que ocuparam as histórias do Batman pelos últimos 60 anos.
Batman, a cidade de Gotham e um historiador de arquitetura extremamente zeloso com um conhecimento prático em explosivos.
Por Jimmy Stamp
Nova York, Dubai, Tóquio, Moscou, Gotham. Cada cidade em cada mapa – real ou fictícia – possui uma característica única moldada pela história e pela geografia. Mais do que um mero senso de lugar derivado da arquitetura e do planejamento, as cidades possuem um sentido que permeia a consciência daqueles que vivem lá até que eles se tornem uma peça do tecido urbano, uma materialização fracionada da própria cidade. Talvez mais do que em qualquer pessoa – real ou fictícia – o Batman está integralmente conectado a sua cidade, a cidade que ele jurou proteger. Em todos os sentidos da palavra, ele é uma verdadeira representação gráfica de Gotham. E a própria cidade de Gotham é uma representação gráfica, não apenas dos sonhos de seus arquitetos fictícios, mas também de nossa paranoia urbana coletiva.
Uma das minhas tramas favoritas dos quadrinhos do Batman foi um enredo intitulado “Destroyer”, publicado em 1992. Escrito por Alan Grant, a premissa é certa para agradar qualquer arquiteto descontente ou discípulo intransigente de Howard Roark: um historiador de arquitetura extremamente zeloso / as bombas com selo da Marinha abandonadas e os edifícios de “concreto sem alma” negligentes que obscurecem a arquitetura neogótica do arquiteto original da cidade e o tema da tese do Mad Bomber, Cyrus Pinkney.
Enquanto estabelecendo cuidadosamente explosivos, o monólogo interno de nosso antagonista é excessivo com polêmicas que condenam a conformidade induzida pela arquitetura contemporânea de Gotham. “Viva em uma caixa, compre em uma caixa, morra em uma caixa. Robôs, é isso que eles querem. Não pessoas. Robôs que consomem. Linhas retas – ângulos agudos – caixas quadradas. Não é de se admirar que a cidade enlouqueceu.” Se, em algum momento, houve uma crítica melhor sobre o Modernismo, eu não ouvi sobre ela.
Conforme o maior detetive do mundo começa a descobrir os motivos aleatórios das guerrilhas e demolições, ele descobre outra Gotham, “uma cidade velha, de curvas e ângulos improváveis – uma cidade esquecida que havia sido ofuscada e enterrada, sufocada pelas torres do século XX.” De repente, no tipo de realização que só pode ser expresso com balões de pensamentos, o Cruzado Encapado descobre o motivo do homem-bomba. “Ele está fazendo isso…pela arte.”
Embora funcione muito bem como uma história independente, “Destroyer” é talvez a série mais notável como introdução para o primeiro filme do Batman de Tim Burton. Por redesenhar agressivamente a silhueta de Gotham, o Mad Bomber foi convenientemente criando uma paisagem mais comparável à cidade de Gotham imaginada por Tim Burton. Assim, quando novos leitores, atraídos pelo filme, escolhem um dos quadrinhos do Batman, a cidade de Gotham que eles vêem nas páginas se parece com a Gotham do filme. A história toda foi sobre atrair novos leitores e vender mais quadrinhos. E esta não foi a última vez que Gotham foi redesenhada. Mais tarde, quando a cidade fictícia foi destruída por um terremoto, foi reconstruída como uma metrópole moderna de vidro e aço, abrindo caminho para a Gotham inspirada em Chicago no Cavaleiro das Trevas por Christopher Nolan, como notou Charles Holland em seu excelente artigo “Dark Knight / White Heat: The Architecture of Gotham City.”
A capa de cada edição na série “Destroyer” apresenta um Batman tradicional balançando em frente a uma Gotham desenhada em preto e branco em carvão. São os desenhos que direcionam o espírito do famoso delineador arquitetônico Hugh Ferriss, filtrados através dos entalhamentos da Carceri de Piranesi. Enquanto Ferriss evita os detalhes que levam à monumentalidade, as representações da cidade de Gotham pela produção premiada do desenhista Anton Furst transbordam em um detalhe e um claro-escuro que colocam o “goth” (gótico) em Gotham, criando um mundo indiscutivelmente “Burtonesco”: um neogótico sombrio e afiado que escorre com gárgulas e perigo. Sua população à beira da insanidade.
Medos urbanos
Desde seu início, a cidade de Gotham tem sido apresentada como a encarnação dos medos urbanos que impulsionaram a origem dos subúrbios americanos, os refúgios da cidade que são. A cidade de Gotham foi sempre um lugar escuro, cheia de vapor, ratos e crime. Uma cidade de cemitérios e gárgulas, túneis e asilos. Gotham é um pesadelo, uma metrópole distorcida que corrompe as almas dos homens bons. No excelente livro “Woody Allen on Woody Allen,” o pobre famoso autor discute seus temperamentos em uma comédia Bretchiana – Sombras e Nevoeiro, que acontece ao longo de uma única noite em uma vila vazia europeia. “Depois de sair à noite, há uma sensação de que a civilização desapareceu. Todas as lojas estão fechadas, tudo está escuro e há um sentimento diferente. Você começa a perceber que a cidade é apenas uma convenção imposta pelo homem e que o real é que você está vivendo em um planeta. É algo selvagem na natureza. Toda a civilização que o protege e que permite que você minta para si mesmo sobre a vida é toda feita e imposta pelo homem.”
Em outras palavras, a civilização termina à noite. E na cidade de Gotham, é sempre noite. No segundo filme de Christofer Nolan, O Cavaleiro das trevas (a noite escura), o Coringa explora esta fraqueza no homem, o eterno medo do escuro onde todas as nossas regras e comportamentos impostos não valem nada; onde o homem retorna a uma natureza mais primária. Ele quer provar que nossa civilidade é uma superficialidade imposta pelas construções da sociedade e pela segurança de nossos edifícios.
No enredo de “Destroyer” aprendemos que o religioso fanático e arquiteto Cyrus Pinkney foi contratado pelo igualmente moralista juiz Solomon Wayne, ancestral do alter-ego de Batman, Bruce Wayne. Para Solomon Wayne, uma cidade deve ser um santuário, uma fortaleza que proteja a cultura e a civilidade da “impiedade das selvas.” Para Pinkney, Gothan precisa de estruturas para se defender dos maus espíritos responsáveis pelo corrompimento do homem. Através de uma epifania mística, o Mad Bomber chega a acreditar que os edifícios de Pinkney mantêm literalmente “os demônios” na baía. As cidades têm o poder de afetar a consciência de seus habitantes e as gárgulas onipresentes do “Estilo Gotham” possuem o papel de assustar as pessoas para o caminho da justiça.
O próprio Ferriss reconhece os efeitos emocionais e de comportamento da arquitetura, escrevendo em seu livro “The Metropolis of Tomorrow”: “Tem sido de nosso hábito assumir que um edifício é um completo sucesso se prevê utilidade, conveniência e saúde a seus ocupantes e, além disso, apresenta um exterior agradável. Mas este estado de espírito falha ao apreciar que as formas arquitetônicas possuem necessariamente outros valores além do utilitário ou até outros que nós vagamente chamamos de estética. Sem dúvidas, estas mesmas formas influenciam especificamente tanto a vida emocional como a vida mental do espectador. Os designers têm percebido a importância do princípio declarado pelo saudoso Louis Sullivan: ‘a forma segue a função.’ O axioma não é enfraquecido pela compreensão de que o efeito segue a forma.”
As representações icônicas e largamente vendidas de Ferriss foram especificamente desenhadas para comunicar a influência emocional da arquitetura – não necessariamente o que o edifício é, mas o poder que ele possui.
Através do filtro de insanidade do homem-bomba, o Batman é, ironicamente, visto como um dos demônios que corrompe a cidade. De fato, como desenhado nesta série, o Batman é um tipo de demônio expressionista – envolto em sombras e movimentos violentos do balanço de sua capa e seu capuz. Mas ele é um demônio ou ele é uma manifestação viva das gárgulas de Gotham? De seus protetores de pedra? Um homem moldado, talvez inconscientemente, pelas abóbadas e arcos góticos e esculturas monstruosas de Cyrus Pinkney. Um homem que, como a cidade que ele protege, aterroriza os cidadãos no caminho da justiça.
Com suas origens psicológicas conectadas ao comportamento criminoso desenfreado de Gotham, Batman é indiscutivelmente um produto, uma expressão da cidade em que vive. Mas ele é seu demônio ou seu salvador? A dualidade do efeito do Batman em Gotham tem sido frequentemente debatida nos quadrinhos e recentemente nos filmes de Nolan. Apesar de suas intenções nobres, é totalmente possível que Batman seja, de fato, uma das maiores causas dos problemas de Gotham. Ao vestir-se como um morcego, ele pode ter conseguido introduzir gradualmente um sentimento primário de medo nos cidadãos de Gotham, mas ele pode também ter inspirado acidentalmente uma nova geração de criminosos. Através de suas ações, através de sua própria existência, ele influenciou diretamente o surgimento de alguns dos “super-vilões” da cidade.
Batman Begins faz esta ameaça muito verdadeira na última conversa entre Jim Gordon e Batman:
Jim Gordon: E escalada?
Batman: Escalada?
Jim Gordon: Começamos a levar semiautomáticas, eles compram automáticas. Começamos a usar Kevlar, eles compram balas perfuradoras.
Batman: E?
Jim Gordon: E você usando uma máscara e pulando em telhados…
Na sequência, no filme O Cavaleiro das Trevas, o Coringa se compara constantemente com o Batman, mostrando que pode haver uma linha muito tênue entre o criminalmente insano e o supostamente heroico – uma dualidade expressada literalmente no “bom rapaz que virou mau” Harvey “Duas Caras” Dent e em uma série de conversas entre o Coringa e o Batman.
Coringa: Ah, você. Você não poderia simplesmente me deixar ir, não é? Isto é o que acontece quando uma força incontrolável encontra um objeto imóvel. Você é realmente incorruptível, não é? Você não vai me matar por algum senso equivocado de justiça. E eu não vou te matar porque você é simplesmente muito engraçado. Eu acho que eu e você estamos destinados a fazer isso para sempre.
Batman: Você estará em uma cela acolchoada para sempre.
Coringa: Talvez possamos dividir uma.
E depois…
Batman: Então por que você não quer me matar?
Coringa: (risadas) Eu não quero matar você. O que eu faria sem você? Voltar a roubar os traficantes da máfia? Não, não, NÃO! Não. Você…você me completa.
Batman: Você é o lixo que mata por dinheiro.
Coringa: Não fale como um deles. Você não é assim! Mesmo se você quisesse ser. Para eles, você é apenas um louco…como eu!
Para o Coringa, e provavelmente para muitas pessoas em Gotham, o Batman é apenas o lado oposto da mesma moeda.
“Destroyer” encerra com o Mad Bomber, o ex-estudante / historiador / SEAL da Marinha Andre Sinclair, rodeado por policiais e equipes de demolição que atiram de forma desafiadora em uma esfera de demolição a qual balança na direção dele. Um ato final fútil em defesa do sonho individual contra o ataque incessante do progresso da sociedade. Conforme a esfera avança em direção a ele, seus pensamentos anteriores ecoam pela cena, “o homem é algo temporário. Ele vive, ele peca, ele morre. Mas a cidade pode permanecer por mil anos. E um sonho pode durar para sempre.”
Infelizmente, a questão da narração final lança pouca esperança para o pesadelo que é a cidade de Gotham. “Gotham de Cyrus Pinkney – gárgulas para assustar pessoas no caminho da justiça – extremidades circulares para confundir os seres maléficos – paredes grossas para bloquear a virtude. A obra de um louco!”
De fato, a cidade de Gotham é a obra de homens loucos. Primeiramente, um arquiteto religioso fanático e seu benfeitor igualmente radical, que pela força de vontade e de certeza moral desejou que Gotham, em sua existência, pudesse se tornar a moralidade para seus cidadãos. Então, anos depois, o Batman tem sua influência. Moldado pelas formas perversas da própria cidade, o Batman afetou tanto a psique de Gotham como as torres e as gárgulas da cidade do arquiteto. Como Gotham, Batman é um ideal, uma força da natureza, um efeito. Mas qual efeito ele está tendo? O ancestral de Bruce Wayne percebeu muito tarde que ele poderia ser realmente o responsável pelo destino criminoso da cidade de Gotham. “Eu queria trancar o mal para fora dos bairros e dos corações dos homens,” Solomon Wayne lamentou em seu leito de morte. “Eu temo que, ao invés disso, eu tenha lhes dado os meios para se trancarem por dentro.” Esperemos que seu descendente não tenha a mesma mágoa.
Logo, o que vem antes, a cidade ou o crime? O herói ou o vilão? O arquiteto ou a cidade?
Jimmy Stamp é um escritor, pesquisador e um arquiteto em retorno. Ele está atualmente trabalhando em um livro sobre a história do programa arquitetônico de Yale, com blog sobre design e a vida cotidiana para o site Design Decoded da Smithsonian Magazine, e ocasionalmente conduz experimentos em crítica de arquitetura em seu próprio blog Life Without Buildings. É particularmente interessado pelo papel narrativo em arquitetura, pelas interpretações contemporâneas do pós-modernismo e pela relação entre as novas mídias tecnológicas e o ambiente construído. Ele pode ser seguido no twitter em @lifesansbldgs.
(Este texto foi primeiramente publicado em 2009 para a segunda parte da trilogia de Christopher Nolan. Republicado com a autorização do autor. )